Carta #12 - Uma ilha que desistiu de ser sozinha
Às vezes é preciso que o olhar do outro seja espelho a nos trazer de volta para nós
"You are the sunshine
of my life
e conversar contigo de manhã
é tão bom
tens o poder do müsli e da
laranja
ou de qualquer fruta de época
for all that matters"
(Matilde Campilho em "Brincando com dentes de tubarão")
Tenho me demorado entre ausências. Em todo esse tempo silencioso em que não enviei mais cartas, quase não escrevi. Mas tive vontade muitas vezes. Algo em mim, no entanto, se debatia, dizendo não.
Semana passada padeci com uma dor insuportável na mão esquerda. Pensei: meu inconsciente gosta mesmo de mandar recados. Uma compressa de gelo depois e a certeza de que meu corpo é o meu maior campo de batalhas, lembrei decepcionada: tinha levantado um objeto pesado e, como canhota, provavelmente fiz mais força com essa mão. Dois dias depois o desconforto desapareceu. Não era histeria, era dor muscular.
Escrevo esta carta sem saber onde quero chegar. Já tentei começar por outros lugares. Ontem mesmo rascunhei algo cujo título era "O outro e suas estreias": me pelo de medo do que vem depois dos inícios - escrevi. E, ironicamente, ficou por isso mesmo.
Parece que as coisas todas estão voltando ao normal. Tirando a parte das guerras, dos corpos de civis estendidos no meio da rua, da bala perdida - e não só em solo ucraniano. Parece que as máscaras caíram, mas é preciso certo controle emocional para não esboçar reações faciais exageradas ao tropeçar no preço do peito de frango no super mercado. Mas esta carta não é sobre nada disso.
Ano passado eu morri. E, peço desculpas pela imagem batida, mas não consegui pensar em nada melhor. No meio de tanto luto, coletivo e individual, acho que perdi o jeito de ser eu. E acordei morrendo de saudades de mim.
Às vezes não sei nem que ano é hoje. Vira e mexe acho que ainda tenho 29 anos ou os 30 que fiz pouco antes da pandemia estourar. Perdida no personagem que nem escolhi criar.
Em que canto perdido do pensamento deixei os meus desejos?
Escrevi no caderninho: "Penso em A. Na forma como os dias mais bestas se enchem com sua presença. Café na cama, carinhos, trechos lidos em voz alta. Tenho medo de perder o encantamento para sempre. Mas sei que não vou."
Toda vez que me desencanto penso em A. Quando nos conhecemos, ela me tirou para dançar uma valsa francesa no meio do bar e eu achei que estava apaixonada. Depois ficamos amigas.
Mais tarde, A. me convidou para uma viagem, que veio a ser uma das mais intensas da minha vida, dessas que parecem ficção. Ilha do Mel, 2017. Apesar da hospedagem insalubre, A. levou um jogo de lençóis novinho, de muitos fios, porque sabia que isso ia me distrair. Não deu tão certo.
Fugimos da hospedagem como adolescentes de 15 anos tentando ficar invisíveis diante dos guardas do colégio. Sem rumo, acabamos achando outro hostel. A música boa que tocava parecia um bom sinal. E era. De noite, conhecemos pessoas e fomos convidadas para um casamento no dia seguinte, entre um Cacique Huni Kuin, do Acre, e uma mulher.
Antes da cerimônia, visitamos uma figueira. A figueira é uma árvore sagrada. A ligação entre os dois mundos. De dia, as energias boas estão lá. De noite, melhor nem querer saber - fomos alertadas. A figueira centenária existe antes de eu existir e existirá ainda, espero, quando eu não estiver mais aqui. Como uma criança sem medo - do tipo que, aliás, nunca fui -, escalei a árvore até o seu topo. Lá em cima, sentada, o coração acelerado pedia por alguma testemunha do feito. Estou aqui. É dia.
Para chegar até a cerimônia do casamento, era preciso atravessar pedras pontiagudas, soltas, daquelas que minha mãe chamaria de perigosas e me pediria para evitar. Segui. Sempre sigo quando estou com A..
Sem a pretensão de fazer da memória qualquer coisa que não seja invenção, lembro que dançamos em volta da fogueira, cantamos em roda e presenciamos a noiva com brincos de flor e grinalda de galho. "As fronteiras não existem. Elas foram desenhadas no mapa. Quem eu ponho na vida dele, ele cuida; quem ele põe na minha vida, eu cuido", ela disse durante a cerimônia. Fico pensando se eles ainda estão juntos.
Depois fomos ao jantar de comemoração. Peixe na brasa, preparado pelo noivo, e devorado com os dedos em pinça, que depois, brilhosos e salgados, eram lambidos um a um. E eu, que me digo tão avessa às cerimônias, entendi ali que amor é rito de passagem.
Dançamos, cantamos, bebemos cataia, usamos rapé soprado pelo Cacique e também sananga, um colírio usado pelos indígenas que, segundo eles, contém o espírito da floresta, trazendo benefícios medicinais e também contato com o espiritual. Que fique claro: a pessoa que experimenta a vida sem medo não sou eu. Mas acho que poucas vezes fui tão eu como nessas horas longas, em que o tempo escapava dos ponteiros do relógio e se embebia de água salgada e mangue.
Na volta para o hostel, bêbadas (eu mais que A., por motivos de cataia), andamos no meio da trilha sozinhas, com o mais completo escuro em volta a nos engolir. Eu só conseguia pensar no que podia acontecer de muito ruim. "Se a gente não dá espaço para o medo, sobra a coragem", A. me disse. Acreditei.
Nunca passei tão mal em toda a minha vida como nesse dia. O Cacique já tinha me alertado: "você vai passar mal". Não acreditei. Mas dito e feito. "É para limpar tudo", explicaram. Pois que limpe então. O certo é que no outro dia acordei como se nada tivesse acontecido. Acho que o Cacique estava certo.
Nessa viagem, andamos de bicicleta por toda ilha, uivamos no meio da escuridão, acompanhadas pelo barulho do mar. Também nessa viagem conheci uma palavra nova: istmo, porção estreita de terra quase totalmente cercada por água. Uma ilha que desistiu de ser sozinha.
Antes de tomar o ônibus em direção a A. para viver tudo isso, quase desisti. Diante de partidas, não tem uma vez em que eu não me arrependa profundamente da ideia besta que é sair de casa e toda a movimentação que isso pede. Fiquei angustiada, não queria ir. Perdi o ônibus, combinei carona e descombinei. A. disse que estaria me esperando se eu mudasse de ideia. Uma afirmação que me acolheu com a liberdade sem julgamentos que é tão cara ao meu sol em Aquário.
Pois fui.
É preciso atravessar a angústia para tentar ser feliz.
Sem garantias, um salto de ponta na possibilidade. Uma vez, quebra-se a cabeça. Outra vez, toca-se o céu de cima de uma figueira secular.
Na falta de escuta com o nosso dentro, o desejo morre pela boca. Engolido, não nomeado. E às vezes é preciso que o olhar do outro seja espelho a nos trazer de volta para nós.
Foi Matilde Campilho quem disse, essa que escrevi na primeira página em branco de seu livro Jóquei que soa melhor nas mãos e na voz de A.: "é preciso muito mais que certas condições climatéricas para que o amor escorra". Na dúvida, "é preciso estar atento, e descobrir o bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate: se cubra de flores e entre para brincar com ele".
PS:
Li / Estou lendo / Lerei
Estou lendo pouca coisa por prazer por conta da tese (qualificação marcada e reta final da escrita por aqui. Também por isso tantos silêncios). O último foi Luxúria, da Raven Leilani. Apesar de ter gostado muito do ritmo - uma narrativa frenética que faz a gente sentir no corpo a angústia da personagem -, não amei. Agora estou lendo As inseparáveis, da Simone de Beauvoir, uma autoficção baseada em, veja só, uma grande amizade de infância da escritora. Para quem leu a tetralogia napolitana, que se inaugura com Amiga genial, acho que dá para dizer que a história das personagens Andrée e Sylvie tem muitos pontos de contato com Lenu e Lila. Ando bastante interessada por essa questão das amizades, aliás. Talvez por isso também a carta de hoje. O próximo da lista provavelmente será Vingar, da Danielle Magalhães.
A terceira temporada de Amiga genial
Falando nisso, a terceira temporada da série Amiga genial (HBO), baseada na tetralogia napolitana de Ferrante, está assim: maravilhosa. A vida adulta, o casamento, a maternidade, o desejo e a luta dos trabalhadores estão em cena, tal qual no terceiro livro. Indico muitíssimo.
A pior pessoa do mundo
Nessa de querer voltar a ser eu, fui buscar filmes que faziam muito o meu gosto no passado e que há um tempo sinto que deixei de ver. O escolhido foi A pior pessoa do mundo, longa norueguês indicado ao Oscar de melhor roteiro original e melhor filme internacional. Parece que a tática deu certo. Me fez lembrar do que eu gosto de ver e de como é bom começar a assistir algo e nem ter vontade de mexer no celular no meio. O filme conta a história de Julie, uma jovem adulta adorável e detestável (adoro personagens assim) que se vê em meio a indefinições: carreira, amores, filhos, família. Uma dramédia para se identificar e ver muitas vezes.
E-book gratuito
Aconteceu uma coisa muito legal nos últimos tempos: lancei o e-book gratuito Pequeno manual de escrita afetiva: escrever do lado de dentro, escrever do lado de fora. O livro é um recorte das minhas experiências como pesquisadora de literatura e principalmente como ministrante de oficinas de escrita – quem já fez oficina comigo vai relembrar de algumas coisas e quem nunca fez agora também pode ter acesso a parte do material. Pequeno manual de escrita afetiva convida quem lê a pensar a escrita como um território de afeto por meio de dois movimentos, mergulhando em si e se deixando atravessar pelo entorno. Nele, você vai encontrar propostas de escrita, provocações e questionamentos que convocam à criação de uma forma livre e fluida. O livro tem patrocínio do PROMIC (Programa de Incentivo à Cultura) e projeto gráfico da designer Gabriela Campaner. Clique aqui ou na imagem abaixo e faça o download! Depois me diz o que achou?
Bem que a astróloga me disse que o forte deste ano seriam as parcerias! Não que eu já não soubesse, pois aquariana com sol na casa 11, a casa das amizades... não à toa esse foi o tema desta primeira carta do ano (em pleno abril rs). Minhas amizades me melhoram. Então um beijo para a Ana e para quem corre do meu lado. Vocês sabem quem são.
Depois de tanto tempo em silêncio, escrevi mais do que nunca antes na história desta newsletter! Sinta-se sempre à vontade para me responder. Eu adoro receber as palavras de vocês de volta. De verdade. Cada resposta me traz uma alegria enorme e faz o diálogo valer, que é o que importa no final das contas.
Sigo, como dizia minha avó Zilda, malemá no @coracaononsense, sempre que tenho algo a dizer.
Obrigada por chegar até aqui,
Layse