Carta #11 - Um pensamento pode ser outro
O inferno é que sou impressionada... mas, se eu tiro meus medos de cena, o que sobra?
"Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão"
(Belchior em “Pequeno mapa do tempo”)
Você já reparou como o Belchior sente muito medo? Na famosa "Na hora do almoço", ele canta:
A gente se olha, se toca e se cala
E se desentende no instante em que falaMedo, medo, medo, medo, medo, medo
Na autoexplicativa "Medo de avião", o medo acaba sendo ponte para o toque e para o contato com o outro:
Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Mas é em "Pequeno mapa do tempo" que o medo ocupa todos os lugares... Belchior lista medos que passam por cidades e estados e resvalam até na santíssima trindade:
Eu tenho medo de Belo Horizonte
Eu tenho medo de Minas Gerais
Eu tenho medo que Natal Vitória
Eu tenho medo Goiânia Goiás
Eu tenho medo Salvador Bahia
Eu tenho medo Belém do Pará
Eu tenho medo Pai, Filho, Espírito Santo São Paulo
O final é o arremate: se o medo morrer, o ciclo persiste, e lá vai ele atrás de outro:
Morre o meu medo e isto não é segredo
Eu mando buscar outro lá no Piauí
Pois estou com síndrome de Belchior.
Medos fixos me rondam. Pensamentos que insistem em ficar. Repetições irritantes. Um medo gota d'água, um medo tic-tac do relógio (ou da bomba) — repetitivo, quase silencioso e ainda assim ensurdecedor.
"Viver é muito perigoso", escreveu Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas. O problema é que eu não esqueço disso nem por um segundo sequer.
Tenho medo de tubarão mesmo em mar que nem peixe tem direito. Quando eu era criança, às vezes tinha uma sensação de tubarão-por-perto mesmo na piscina. Tenho um medo absurdo de barata — o que já foi assunto de outra carta. Tenho medo de pegar estrada de carro e de coisas complementares a isso, como acostamento, temporal e fumaça na pista. Mas também tenho medo de avião. Uma vez, olhando o avião se mover no meio do Atlântico naquela tvzinha, comecei a hiperventilar e achei que ia ter uma crise de pânico (nunca tive, mas morro de medo de ter). A única coisa que me fez ficar melhor foi pensar: "Quer saber? Se morrer, morreu". Não tem nada que eu possa fazer daqui de cima se essa coisa cair. E então, para minha surpresa, segui vivendo.
Quando eu era menina, tinha medo de nunca beijar na boca — a adolescência estendida e eu a desencontrar do corpo do outro para todo o sempre amém. Depois tive medo de me apaixonar e depois de nunca mais me apaixonar, mas toda vez que me apaixono tenho medo de permanecer para sempre com olhar perdido e acabar ficando burra.
Também tenho medo do meu vizinho de cima porque ele faz um barulho absurdo de madrugada, coisa que eu julguei com toda certeza se tratar de um surto psicótico. Depois descobri que ele é professor de crossfit. Mesmo assim, continuo com medo, porque alguém que acorda às 4h da manhã para fazer polichinelo não pode ser confiável.
Tenho muito medo de cara-na-vidraça. Sabe? Você ali, tranquila, de repente olha para a janela e pá: cara-na-vidraça. Pavor! Tenho medo de pular de um prédio sem querer ou de derrubar um bebê no chão ou de pisar num cachorro filhote. Tenho muito medo de gato caindo de janela, mesmo com tela. Mas também não teria gato em casa, porque tenho pavor de imaginar ele passeando pela rua no meio de tanto perigo.
O inferno é que sou impressionada. Então esqueço de tudo, mas lembro perfeitamente da corretora de imóveis que tentava vender a chácara da minha avó, em 1997, contando detalhes de um crime em que fizeram a família de refém e causaram uma tragédia, o que destruiu minha tranquilidade pelos próximos 20 anos e me plantou um susto constante (e que também fez a chácara ser vendida pela metade do preço que valia).
Andando de bike no final de semana, fui acometida por um medo repentino. E se eu perdesse o controle da bicicleta ao bater numa daquelas tartarugas amarelas, caísse do lado da pista e um carro passasse por cima de mim? No mesmo momento, gelei e sofri por alguns segundos ao pensar como meu namorado ia contar para minha mãe que eu morri. Foi o tempo de fazer a curva para eu perceber com surpresa que não morri e que na verdade o dia estava mesmo bem bonito. E não dá um medo de acontecer alguma coisa feia quando tudo fica bonito assim?
Na última reunião com meu orientador de doutorado, falei que estava com muito medo de não conseguir terminar minha tese e ter que devolver todas as minhas bolsas. Já fiz a conta... e tive mais medo ainda, porque jamais teria esse dinheiro, o que me fez planejar fugas e desaparecimentos (coisa que me ocupou a cabeça e me fez não escrever uma linha sequer, veja bem a hipocrisia da neurose).
Tive muito medo de sair da casa da minha mãe para morar sozinha, porque era aterrorizante pensar em ficar sem ela. Mas também tive medo de morar para sempre na casa dela e perder o bonde para a vida adulta. Mas, surpresa: desde o dia 1 em que moro sozinha, não tive uma unidade de segundo de sofrimento. O que me aterroriza é o pensamento.
Eu queria muito que minha cabeça parasse às vezes. Não sempre. Porque é um inferno, mas é também por isso que eu escrevo. É o que chamo de masturbação da mente, assunto que o Belchior entendia bem:
Eu estou muito cansado do peso da minha cabeça
Desses dez anos passados, presentes
Vividos entre o sonho e o som
Em abril de 2020, meu namorado me chamou para morar com ele. E daí a pandemia veio com tudo. Dá medo de fazer mudança no meio disso, né? Não fui até agora. E antes disso já tinha medo, porque é uma casa. E eu tenho medo de casa. Casa de esquina então? Medo em dobro. Pois enquanto ensaio a minha ida, todo dia passo um olhar de raio x por cada cm do terreno para ver apitar o que me dá medo e me leva para longe.
Conversando disso com uma amiga, ela me mostrou um vídeo da Jout Jout (sdds) que reflete sobre a cultura do medo, algo típico do modus operandi desse Brasilzão de meu deus. Ela fala sobre as ideias frequentes que levam sempre às piores tragédias e convoca: "um pensamento pode ser outro". Do mesmo jeito que a gente pensa todo tipo de coisa ruim, também podemos pensar em outra direção. O inevitável não cabe no pensamento.
Fiquei surpresa porque nesses anos todos tenho colocado meus medos para dormir com tanto carinho que não sei como é viver sem eles.
Se eu tiro meus medos de cena, o que sobra?
Brincando de um pensamento pode ser outro, te digo: um apartamento só meu com cheiro de alecrim; minha mãe não foi sequestrada, ela só dormiu cedo; a gente dentro de um pássaro de alumínio e cobre sobrevoando um oceano para descer no sonho; domingos bonitos em cima da bicicleta azul; o ipê amarelo pelo caminho; a horta no fundo do quintal; as ardósias que são as mesmas da minha casa de criança; o cheiro da dama-da-noite; a onda do mar a fazer a gente dançar enquanto nada; a tese prontinha, impressa, e eu falando ufa, agora para onde mais quero ir?
Belchior canta no fim de "Na hora do almoço":
E eu inda sou bem moço
Pra tanta tristeza.
Deixemos de coisas,
Cuidemos da vida,
Senão chega a morte
Ou coisa parecida,
E nos arrasta moço
Sem ter visto a vida
Falar do medo é lembrar, mas também deixar ir. Dar nome às coisas para que elas se tornem palpáveis e depois possam ser desfeitas com as nossas próprias mãos (ou pelo menos guardadas no bolso).
Então te lembro daqui: meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente.
Atrás de que medos você se esconde da sua pressa de viver?
PS:
Bobagens imperdíveis
A gênia Aline Valek escreve, desenha e tem podcast! O Bobagens imperdíveis é uma preciosidade e tem um episódio dedicado ao Belchior, que muito inspirou esta newsletter. Sugiro fortemente que você pare e ouça este e outros mais.
O medo em tempos autoritários
A quem se interessar por outras leituras da obra do Belchior, há muito mais para ser visto, como no artigo O medo em tempos autoritários: um “toque” de Belchior, que inclusive destaca "Pequeno mapa do tempo" como a música que resume o sentimento mais característico de uma ditadura: o medo.
Li, estou lendo, vou ler
Meu cérebro deu uma forte derretida nas últimas semanas, então me desencontrei bem das leituras... O último livro que li foi Sangria, da poeta contemporânea brasileira Luiza Romão, definida por Heloisa Buarque de Hollanda no prefácio como dona de "uma expressão absolutamente contemporânea da história e da cultura indignada e comprometida com a política estética desta segunda década do século XXI".
Agora estou lendo Falso espelho, da Jia Tolentino. Faz tempo que queria ler e achei que ensaios seriam uma boa para fluir a leitura nesses tempos de baixíssima concentração. Até então, o "Heroínas puras", sobre personagens femininas na literatura, é meu preferido. Ontem também comecei a biografia do Belchior, Apenas um rapaz latino-americano, escrita por Jotabê Medeiros, aproveitando a onda de obsessão pelo cantor para quebrar a minha própria regra de não ler mais que um livro ao mesmo tempo.
Depois estava decidida a ler algum levinho, pois já bastante difícil viver no Brasil de 2021. Masss comprei Uma tristeza infinita, lançado recentemente pelo brasileiro Antônio Xerxenesky, que ao que tudo indica é pesadão bad trip socorro e, enfim a hipocrisia, tô doida para ler!
Eis aqui o que deu para fazer em matéria de carta número 11. Sinta-se sempre à vontade para responder, se for do seu desejo.
Agradeço pelo tempo dedicado às minhas palavras e sigo no @coracaononsense sempre que a tese der um trela (quem vê pensa que está rendendo muito...).
Grande abraço e até,
Layse