Carta #10 - Flor de Julho
Há tempo de secar e tempo de florescer. É preciso lembrar das flores. Todas elas: não só as de fora
"Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio", aproveitar a única notícia de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cidade imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a humanidade ainda poderá ser salva, e que ás vezes ainda vale a pena escrever uma crônica."
(Rubem Braga em "Flor-de-maio")
Dentre todas as coisas que minha mãe me ensinou, listo três: tire os sapatos antes de entrar em casa; aproveite os regalos da vida; se encante pelas coisas - todas elas, as grandes e as pequenas.
Os sapatos eram uma ordem clara. Os regalos da vida vinham sempre quando chegava algum dinheiro extra e lá íamos nós brincar de extravagâncias. "O que é de gosto, regalo da vida", ela repetia - e repete ainda hoje.
Sempre que estou triste, acho que mereço um agrado. O que é um problema quando tudo em volta está horrível. Sinto que caminho entre destroços invisíveis, nomes e sobrenomes flutuando por todos os lados. É como se minha cidade tivesse desaparecido quase que por completo e com ela fossem também embora todas as pessoas que aqui vivem. Sumiram sem chance de despedida. Desapareceram debaixo da terra como uma semente infértil. Não brotarão senão na lembrança de quem ficou.
Como criar encantamento quando tudo em volta é desolador?
Ilustração: Livia Falcaru
Voltamos ao número três da lista: o olhar encantado. Minha mãe nunca o mencionou. Só estava ali o tempo todo. Era um pacto silencioso; um fantasma bom. Os rios da infância contados em ordem nos dedos, criando um mapa interno úmido, os ipês floridos das estradas do Norte do Paraná, as casas bonitas que descobríamos em passeios no meio da tarde de domingo e que sonhávamos nossas, mesmo sabendo que só seriam construídas e habitadas no desejo. Desejar como quem sonha.
Minha mãe conta que gostava de parar o carro na estrada para olhar o horizonte quando viajava com as amigas na juventude. Parar e ver. A vista só existindo e ela respirando junto com as nuvens, tentando entender o vento. As amigas às vezes se opunham: "para quê? Vai atrasar a viagem". Mas tem que ter por quê?
Onde você apoia o olhar?
"Filhinha, olha o rio. Filhinha, olha a vaquinha! Filhinha, ali passa o trem. Filhinha, essa árvore se chama ipê. Filhinha, olha a ponte."
Rubem Braga tem uma crônica que eu gosto muito... Nela, ele começa dizendo que, no meio de tanta notícia ruim, uma pequena nota no jornal atentava o leitor para a temporada florida da Flor de maio no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O rodapé vira motivo para o texto, que se torna um elogio ao pequeno, ao fato miúdo, à vida que acontece ao rés do chão.
Pois bem, comprei minha flor de maio no ano passado. Não por causa da crônica, verdade seja dita, mas porque estava na promoção. Veio florida, mas logo se fez exclusivamente verde. Seguiu assim por meses. Até que, dia desses, pequenos botões rosa-alaranjados brotaram. Firmes, fechados, resistentes. Indiferentes ao próprio nome, maio chegou e foi embora e nada deles abrirem. Junho idem. Mas julho veio e trouxe o florescimento - a primavera em pleno inverno no meio da minha sala a me lembrar que o tempo passa e a vida segue, alheios à nossa vontade. Há tempo de secar e tempo de florescer.
É preciso lembrar das flores. Todas elas: não só as de fora. E não se preocupe: embora pareça, não sou ingênua. Mas sei que, em anos como esses, precisamos escavar o encantamento em lugares improváveis, como em pequenos vasos de plástico. Fazer os dias ganharem sentido. Inventar um, se for preciso. Fazer da memória a nossa casa se o presente a isso se recusar. Lembrar da força e da delicadeza das avencas, decorar o veludo das violetas, recontar as samambaias do jardim que não existe mais da avó que também já partiu e comemorar a chegada tardia da flor de maio em pleno julho.
Há milagres inesperados nos atrasos e nos contratempos. Na dúvida, continue regando a terra.
Ilustração: Livia Falcaru
PS:
Segunda turma da Oficina de Leitura - Clareando Clarice
No primeiro sábado de agosto (7), vou conduzir a segunda edição da Oficina de Leitura - Clareando Clarice. Em um único encontro, leremos dois contos e duas crônicas (enviados com antecedência) de Clarice Lispector a fim de iluminar sua obra e convidar você a se deixar atravessar pelas palavras de uma das maiores escritoras brasileiras. Propondo um caminho mais afetivo do que teórico, Clareando Clarice é um espaço para todas e todos, independentemente de conhecimento prévio. Provavelmente será a última vez que eu vou ministrar essa oficina, então, se é do seu desejo fazer, vamos? O custo é de R$ 55, mas ofereço bolsas a quem não tem condições financeiras de pagar - principalmente pertencentes a minorias sociais (população negra, lgbtqia+, indígena, periférica etc.). Inscreva-se e saiba mais aqui, conte para alguém que possa se interessar ou, se for seu caso, declare interesse por uma bolsa respondendo a esta newsletter ou me mandando uma mensagem pelo Instagram.
Li / Estou lendo / Lerei
O último livro que li foi o Pequena coreografia do adeus, da Aline Bei. O segundo romance dessa escritora contemporânea brasileira é, assim como o primeiro (O peso do pássaro morto), um socão. Tenho a teoria de que os livros da Aline são todos feitos para se ler de uma vez só. Como numa peça de teatro que você entra e só sai quando as luzes se acendem. Aliás, não por acaso, Aline tem formação em Artes Cênicas... E , de fato, ela pega a catarse nos braços e tira a gente para dançar junto. Não tem muita saída. Quando você vê, já se foram as quase 300 páginas de um susto só. E não por acaso dá para ler tudo nesse ritmo. Aline Bei escreve em linhas quebradas que são versos, mas ao mesmo tempo soam como texto dramático e no todo constroem um romance. Um híbrido que envolve e faz fluir a leitura como poucos. Em vários momentos, enquanto lia, eu só conseguia pensar: Como cabe tudo isso, nesse nível de mergulho, dentro de uma pessoa - dentro de Aline?
Agora estou lendo Daisy Jones & The Six, da norte-americana Taylor Jenkins Reid. Estou amando. Completamente engajada na história, viciada nas personagens e encantada com o andar da narrativa. O livro tem um estilo bem documental, estruturado em respostas/visões dos acontecimentos de acordo com cada pessoa da banda sobre a qual o livro se foca - o que mostra que a memória é uma ficção e a verdade é sempre relativa! É tudo tão real que até parece mentira que Daisy Jones & The Six nunca existiram! As personagens mulheres me encantaram ainda mais: são super bem trabalhadas, complexas, encantadoras, fortes e contraditórias... Estou passando da metade e devorando o livro (spoiler: enquanto esta newsletter estava no forno, eu já terminei a leitura. Maravilhoso mesmo e surpreendente na finaleira, quando nem era preciso ser, visto que a história já tinha encantado por si só). Uma ótima narrativa para fugir para longe do Brasil de 2021 e viver os EUA dos anos 70 ao som de rock'n roll, amor & outras drogas.
Como gosto de mesclar gêneros, agora pretendo começar Sociedade do cansaço, do filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han (alguém aí já leu?)...Veremos.
Agora me fala de você? Qual é a sua flor de julho da vez?
Gosto muito de receber cada resposta, então não pense duas vezes se bater a vontade de me escrever, ok?
Agradeço muito pela leitura e pelo tempo dedicado às minhas palavras. Significa muito. De verdade.
Enquanto a próxima carta não chega, continuamos a conversa no @coracaononsense, sim?
Grande abraço e até,
Layse
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